PÉ DE PILÃO (MÁRIO QUINTANA)

PÉ DE PILÃO
(MÁRIO QUINTANA)


O pato ganhou sapato,
Foi logo tirar retrato.

O macaco retratista
Era mesmo um grande artista.

Disse ao pato: “Não se mexa
Para depois não ter queixa”.

E o pato, duro e sem graça
Como se fosse de massa!

“Olhe prá cá direitinho:
Vai sair um passarinho”.

O passarinho saiu,
Bicho assim nunca se viu.

Com três penas no topete
E no rabo apenas sete.

E como enfeite ele tinha
Um guizo em cada peninha.

Fazia tanto barulho
Que o pato sentiu engulho.

Pousou no bico do pato:
- Eu também quero retrato!

- No retrato saio eu só,
Prá mandar a minha vó!

A discussão não parava
E cada qual mais gritava.

Passa na rua um polícia.
“Uma briga? Que delícia!”

O polícia era um cavalo
Montado noutro cavalo.

Entra como um pé de vento
Prende tudo num momento.

“Hão de ficar vida e meia
Descansando na cadeia”.

“Ah! Ah! Ah!...” ri ele assim.
E o cavalo: “him! him! him!...”

A avó do pato é uma fada
Que ficou enfeitiçada.

Nunca, nunca envelhecia,
Era loira como o dia.

Ai, que linda que era ela!
E agora seca e amarela.

Parece passa de gente,
Não tem cabelo nem dente.

Vou num instante contar
Como pôde assim mudar.

Lá na Floresta Encantada
Mora a Fada Mascarada.

Ninguém direito a conhece,
Pois sempre outra parece.

Conforme lhe dá no gosto,
Cada dia usa um rosto.

É que é feia, feia, feia...
Como ninguém faz idéia!

Quando no espelho se olhava,
O espelho logo rachava.

Se olhava um rio, - ora essa!
Corria o rio mais depressa!

E não sei se já lhe disse
Que a vó do pato era Alice.

Ora, um dia, Alice vinha
Pela floresta sozinha.

Vendo-a, a Fada Mascarada
Voa à casa da coitada.

O pato, naqueles dias
Era menino, o Matias.

“Olha, menino, o que eu trouxe!”
E lhe mostra um lindo doce.

Ele, guloso e contente
Finca o dente no presente.

Vai falar. Mas que é que há?
Só pode dizer quá... quá...

Pois o menino tão belo
Virou patinho amarelo.

Chega a avó. E vejam só:
A Fada lhe atira um pó.

Nem havia o pó sentado,
Estava tudo mudado.

Num segundo a pobre Alice
Toda encolheu de velhice.

Mal pode andar. Chama então
Seu neto do coração.

Vem um patinho: quá? quá?
Nenhum compreende o que há.

E pela floresta escura
Vão um do outro à procura.

E tanto andou o patinho
Que perdeu o seu caminho.

Vai seguindo, estrada fora,
Até o romper da aurora.

Chega à cidade. Há um regato.
Que alegria para um pato!

Matias põe-se a nadar
Sem mais nada recordar.

Passa um grupo de meninas.
É cada qual mais traquinas.

- Um pato! – gritam em coro.
- Que lindo patinho de ouro!

Rosa, a filha do Prefeito,
Agarra-o com todo o jeito.

Comida e casa lhe dá
Diz o patinho: quá, quá.

Rosa tem um professor
Chamado Dom Galaor.

Se o professor ergue o dedo,
Rosinha treme de medo

E quer que o mundo se acabe,
Pois a lição nunca sabe.

Enquanto o mestre falava
O pato, sério, escutava.

Tanto assim que já sabia
Muita história e geografia.

Porém, antes de mais nada,
O seu forte era a taboada.

Num dia de sabatina
Que pena dava a menina!

Quanto é sete vezes nove?
E Rosinha nem se move.

Mas o pato, desta vez,
Assopra: sessenta e três.

E ele mal acreditava:
Nem sabia que falava!

No jardim à tardezinha
Chega sempre uma andorinha.

Tem por nome Margarida
E passa a voar toda a vida.

Nada no mundo lhe escapa:
É como se fosse um mapa.

A casa de dona Alice?
Já vi do alto... ela disse.

Margarida! – exclama o pato
- Leva-lhe, então, meu retrato.

“Sou eu mesmo!” Escrevo atrás
E o resto lhe contarás.

Ora, o pato, finalmente,
Era um bicho meio gente.

Queria tirar retrato,
Mas ao menos de sapato.

Deu-lhe Rosa uns sapatinhos
Que eram mesmo uns amorinhos

E lhe disse: “Tem cuidado,
Pois são do meu batizado”.

E no que deu tal história,
Tem-no vocês na memória.

Vejamos como eles são
A caminho da prisão.

Nesta ordem, pela estrada,
Vai seguindo a bicharada:

Bem atrás, o passarinho,
Atado ao pé do vizinho,

Depois, Matias, unido
Ao macaco desgranido

E este devidamente
Preso ao cavalo da frente.

Quanto ao cavalo de cima
Procura no ar uma rima

(Pois compunha uma balada
Para a sua namorada).

Comida? Nem pra cheirar
E é preciso andar, andar.

Muito além daquela serra
Fica a prisão que os aterra.

Para o polícia, isto sim,
É que não falta capim.

A pança ronca faminta,
O passarinho tilinta.
E segue a turma encordoada,
Erguendo a poeira da estrada.

Mas algo acontece enfim,
Só por causa do tlim-tlim.

E entra nova personagem
Para dar gosto à vigem.

Uma cobra cascavel
Bicho enganoso e cruel

E que ante as outras faz gabo
De ter um guizo no rabo.

Essa cobra amaldiçoada,
Em um galho encoscorada,

Quase que tomba do galho
Ouvindo o som do chocalho.

“Que lindos guizos!” – diz ela
E de inveja se amarela.

“Eu jamais conseguiria
Tão bonita melodia...

Pelos dois chifres do Diabo!
De meu rival vou dar cabo”.

E com perigo de vida,
Segue a turma distraída...

E o repelente animal
Prepara o bote mortal.

O macaco retratista,
Que tem bom golpe de vista,


Vê a cobra e pensa: hum!
Vou matar esse muçum...
Passa ao alcance do galho,
Pega a cobra do chocalho.

Depois torce a desgraçada,
Tal e qual roupa enxaguada.

E a cobra, de cabo a rabo,
Entrega a alma ao Diabo.

E o macaco desgranido
Tem uma idéia, o sabido...

Os dedos no bolso mete,
Sai do bolso um canivete.

Corta o chocalho da cobra
E no chão atira a sobra...

Também corta, com perícia,
Ao cavalo do polícia,

A corda que o liga aos dois,
Prende-lhe o guizo depois.

Os cavalos vão seguindo,
Vão seguindo e vão ouvindo,

Por artes de tal manobra,
Os guizos da extinta cobra.

E continua o de cima
Em procura de outra rima:

“Olhar pra trás não preciso,
Enquanto escuto esse guizo...”

Assim pensa o chichisbéu,
Fazendo versos ao léu,


Enquanto os presos se vão,
Vai rimando o paspalhão...
E nisto o céu escurece,
Pois, como sempre, anoitece.

E eis que à beira da floresta
Há uma capela modesta

Que aos passantes causa dó
Por ter uma torre só:

É como uma vaca mocha
Ou uma pessoa coxa...

Por fé, ou outros motivos,
Entram nela os fugitivos.

Que paz que sentem, enfim:
Será que o Céu é assim?

No altar, Nossa Senhora
Tem um ar tão bom agora,

Um ar tão bom e paciente
Que parece a mãe da gente.

Nos braços mostra o Menino
Rechonchudo e pequenino.

O Menino tem na mão
Um chocalho sem função.

Como fizeram, também,
O burro e o boi em Belém,

Os bichos eu ali chegaram
Humildemente o adoraram

E, para a noite passar,
Deitaram-se atrás do altar.

O passarinho, coitado...
Que bicho mais assustado!

Basta zumbir um mosquito,
Já ele desperta, aflito!

Agora mesmo acordou.
Será que ouviu ou sonhou?

Vem um vulto de mansinho...
Nem respira o passarinho!


É um vulto negro e embuçado,
Negro e mal intencionado!

Vem roubar, o sacripanta,
O manto da Virgem Santa,

O rico manto azulado,
A ouro e prata bordado.

Vai o vulto pôr-lhe o dedo...
E o passarinho – ai que medo!

Todo tilinta, tlim, tlim,
Na tremedeira sem fim.

O ladrão, em desatino,
Pensa que é o Santo menino

Que o seu chocalho sacode,
Vai fugindo como pode.

E o passarinho, feliz,
Agita as asas e diz:

“No mundo não há bandido
Que possa com meu tinido!”

Como um herói, adormece...
E nem nota o que acontece...

Uma velha... quem é ela?
Vem entrando na capela.

Toda curvada e gemendo,
Pra si mesma vai dizendo:

“Quem me dera ter na mão
Minha vara de condão!

Fui roubada e enfeitiçada,
Já não posso fazer nada...

No estado em que estou agora
Só mesmo Nossa Senhora!

Sem feitiços nem varinhas,
A Rainha das Rainhas

Com a graça celestial
Põe fim a tudo que é mal.

E eu não quero ser mais fada
E não desejo mais nada

Senão achar meu netinho.
Onde é que estás, pobrezinho?

E de cansaço adormece
E nem nota o que acontece...

* * *
Quando acorda – que alegria!
Matias lhe dá bom dia.

É ele, outra vez menino,
Com seu sorriso ladino!

E ela está em pleno viço,
Como antes do feitiço!

Agora, já não é fada,
Vive a bordar, sossegada.

E como qualquer senhora,
É na cidade que mora.
Como todos, Dona Alice
Espera, em calma, a velhice.

E usa o cabelo em bando
Como convém a uma vó.

Vai Matias de sacola,
Todos os dias pra escola.

E para que a nossa história
Não ficasse relambória,

A Rosinha, envergonhada
De sua vida passada,

Estuda como uma traça
E sem mais sofrer vexames

Passa sempre nos exames
Como a luz pela vidraça.






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